quarta-feira, 4 de julho de 2007

Prece sob o juazeiro


Carlos Henrique e Diego Cesar


Domingo, pouco mais de 10 horas da manhã. Primeira anotação: o céu de Pentecoste (103 km de Fortaleza) é impressionista. O azul causa espanto, as nuvens parecem borradas. A segunda: na “sede”, como é chamada a zona urbana da cidade, quase nenhum movimento. Bares vazios, barracas de feira desmontadas e empilhadas sob um espaçoso galpão. Alguns comércios atendem a clientela local. Uma senhora caminha devagar, outra costura na calçada. Aqui e ali, motocicletas cruzam os estirões calçamentados. Na pracinha em frente à Dr. José Borba, principal avenida de Pentecoste, silêncio. Sob o cajueiro, o vendedor de picolés descansa. Olha o peixe esculpido ao lado do coco e do caju de concreto e suspira. O calor na cidade espanta qualquer forasteiro. As histórias contadas pelo grupo de jovens que teima em vencer a pobreza e driblar a censura atraem.


“Onde fica a rádio do Avelino?”. Repetida algumas vezes, a pergunta nos leva à Rádio Difusora Vale do Curu, que transmite na amplitude modulada 1560 Khz. De lá está sendo veiculado, naquele instante, um dos produtos radiofônicos do Programa de Educação em Células Cooperativas (Prece). No pequeno estúdio da rádio, Edílson Costa, 25 anos, comanda o Coração de Estudante, que vai ao ar das 9 às 11 da manhã. “A gente fala de política, discute a realidade da nossa comunidade”, explica.


O Prece, que nasceu e foi criado em Cipó – comunidade localizada na zona rural, a 18 km da sede de Pentecoste –, tem, hoje, além de uma hora de programação diária, outras tantas atividades que, somadas, vêm mudando a cara da realidade de muitos jovens do Vale do Curu e regiões próximas. Desde o seu surgimento, em 1994, o cursinho pré-vestibular, por exemplo, já aprovou mais de 140 estudantes na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ciências Sociais, Pedagogia e Agronomia são, de longe, os cursos mais procurados. “Houve um tempo em que era química, por influência do Manoel, criador do projeto”, fala Edílson. Seja em química ou matemática, todos os anos, desde 1996, quando Antônio Alves Rodrigues conseguiu um primeiro lugar em pedagogia, abrindo uma brecha e tanto no paredão do vestibular, aproximadamente 20% dos alunos inscritos por meio do projeto conseguem vencer a peneira do certame. Entram na universidade, se formam e voltam nos finais de semana. Alguns, durante a semana também.


Caso de Jocélio Simplício, 21 anos, estudante de Ciências Sociais. Terminou os estudos na Escola de Ensino Fundamental e Médio Tabelião. Conheceu o Prece no último ano do ensino médio, em 2003. O grupo havia criado uma célula na zona urbana de Pentecoste. A aprovação não demorou: seria engenheiro de pesca. Com o tempo, percebeu que aquela não era a sua praia. “Tinha começado a me envolver com política, discutia no grupo. Queria Ciências Sociais”, explica. Novo vestibular. Por pouco, não entra de primeira. No ano seguinte, outra tentativa. Desta vez, com sucesso. Hoje, tantas as idas e vindas, Jocélio sabe de cor o cenário que margeia a estrada que leva a sua cidade. Pentecoste tem um ímã que atrai esses meninos e meninas.


Marciano é outro. Manoel, o primeiro a deixar a comunidade do Cipó para estudar na capital, ainda nos anos de 1960, também. Hoje, formado em agronomia, Marciano cursa o mestrado da UFC. Manoel Andrade, químico e fundador do Prece, realiza os estudos de seu pós-doutoramento nos Estados Unidos. Ambos mantêm laços estreitos com o projeto. Marciano apresenta um programa de rádio às segundas-feiras, das 13 às 14 horas. Fala de questões agrárias, divulga informações importantes e estimula a produção dos pequenos agricultores da região. Dos Estados Unidos, Manoel tem cadeira cativa no programa apresentado por Edílson.


DE CIPÓ PARA O MUNDO


“O campo é um lugar atrasado, não por ter que ser atrasado, mas por falta de políticas públicas; ele pode ser diferente, isso só depende de nós. Em São Paulo, por exemplo, as pessoas não precisam sair de Campinas para ir morar na capital, não precisam sair de Americana para morar lá. Aqui nos EUA você tem uma cidade com dois mil habitantes que tem tudo, boas escolas, hospitais, boas universidades. Isso depende de nós, é possível”, incentiva Manoel, durante a sua participação no Coração de Estudante do último domingo, 3 de junho. Edílson provoca a discussão; ele devolve: “Se eu tivesse a oportunidade de falar para todas as pessoas de Pentecoste, a primeira coisa seria acreditar que é possível. É não acreditar que tudo é uma fatalidade, coisa do destino, que o bom está em outro lugar. As pessoas costumam dizer que os políticos têm força. Eu acho que o povo tem força, os políticos têm influência”.


O Prece comprova a validade das palavras de seu criador. Hoje, são 13 Escolas Populares Cooperativas (EPCs) espalhadas por Pentecoste e municípios vizinhos, atendendo a cerca de 700 estudantes. Em Fortaleza, dois bairros contam com células do projeto: Benfica, onde se localiza o Centro de Humanidades da UFC; e Pirambu, um dos bairros com maior índice de criminalidade da capital. Além das células escolares, o Prece também desenvolve trabalhos na área da governança e controle social, comunicação, esporte e cultura. Segundo Manoel, o movimento gerado a partir do grupo que deu início a tudo vai muito além do simples ingresso no ensino superior. “O programa vai além. A iniciativa maior advém da transformação da comunidade, resgatando a melhoria da qualidade de vida de quem nada tem além de coragem, esperança e força para mudar”.


ARANDO A VIDA, CULTIVANDO SONHOS
Fazer um programa diário é tarefa das mais complicadas. No rádio, ao vivo, as dificuldades se intensificam. Numa cidade do interior, onde esses veículos encontram-se invariavelmente sob o mando de políticos, é quase uma missão impossível. Daí a importância do trabalho desenvolvido por jovens “precistas”. Marciano, Gleison, Clara, Elvis, Edílson e Jocélio são apenas alguns deles. Problemas técnicos que surgem no meio de entrevistas com políticos de oposição, pedidos excêntricos vindos da coordenação da rádio e a já costumeira falta de verbas também são apenas algumas das dificuldades enfrentadas pela equipe que produz, diariamente, o programa Coração de Estudante.


Anunciar a inauguração de uma praça em São Gonçalo, município vizinho a Pentecoste, em homenagem ao pai do dono da rádio. Jocélio anota o pedido, feito pelo próprio coordenador da rádio. O veículo pertence a um deputado. Anota tudo, letra após letra, e o homem vai embora, satisfeito. O programa acaba, e nada de inauguração de praça. “A gente não faz esse tipo de coisa. Eles sabem disso, mas ficam insistindo”, conta Jocélio. Apesar das dificuldades financeiras, eles cortaram a publicidade e passaram a pagar um pouco mais no final do mês. “A gente pagava R$ 300. Com o corte, passou para R$ 350. Essa publicidade se chocava com o que a gente dizia, com os nossos comentários no programa”, emenda Marciano.


Os causos envolvendo o dia-a-dia na rádio se sucedem. Uma tarde apenas é muito pouco para ouvir o que têm a dizer os jovens comunicadores, suas preocupações, seus problemas. E também para falar do espanto e da alegria que sentem ao ouvir o primeiro programa de rádio produzido por Overmundo. “Volta aí de novo, só pra gente ouvir aquela abertura que ele fez”, pede Marciano. Marcelo Rangel e Eduardo Ferreira, sem saber, passaram uma tarde inteira dando toques sobre locução e outras coisas para o grupo. No final da oficina de rádio realizada por estudantes de jornalismo da UFC no último domingo, o pedido. “Deixa o programa gravado aí no PC”. E a promessa: “A gente grava outros e manda num CD”.


EDÍLSON, O LOCUTOR


Edílson é moreno, aproximadamente 1 e 65 de altura. Nasceu em Cipó. Tem 25 anos. Difícil sorrir. Aos quatorze, mudou-se com os pais e a reca de irmãos – doze ao todo – para a sede. Completou os estudos. Conheceu o Prece ainda no ensino médio. Ouvia falar dos alunos, sete no início, que estudavam debaixo do juazeiro ou na antiga casa de farinha. “Quando vi, estava freqüentando o grupo todos os fins de semana, indo de pau-de-arara mesmo”, conta.


A viagem até Cipó é difícil. De pau-de-arara, são cerca de duas horas através de estrada carroçal. “A viagem era uma tormenta. Saía de casa na sexta-feira e só voltava na segunda, de madrugada. A gente, uns quarenta estudantes, chegava lá suado e coberto de poeira”, conta. Depois de um ano estudando no Prece, Edílson Costa, ex-agricultor, prestou vestibular. Entrou para o curso de Pedagogia da Terra, ministrado pela Faculdade de Pedagogia da UFC em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

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